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Paulo Nunes conversa com Arthur Nogueira sobre o “Livro insagrado das traquinagens” (Amo! Editora, 2022)

No “Livro insagrado das traquinagens”, Paulo Nunes apresenta uma série de textos curtos, que classifica como “maquinações criativas”. 

Entre a poesia e a prosa, o professor evoca a linguagem das ruas, as “coisas de ouvir falar”, para reescrever nossas vivências segundo a “doidura” dos poetas. 

Em nova edição do “Amo bate-papo!”, o compositor Arthur Nogueira, que também faz parte do catálogo da Amo! com o livro “Brasileiro profundo”, conversa com Paulo Nunes sobre esse “manual de ações provocativas”, cujo objetivo é desafiar a mesmice de um mundo “sem cor”. 

O “Livro insagrado das traquinagens”, de Paulo Nunes, terá noite de autógrafos no dia 10 de junho de 2022, a partir das 18h30, na Livraria Paka-Tatu (R. Bernal do Couto, 785 – Umarizal), em Belém.

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Arthur Nogueira: Seu livro começa com a afirmação de que “glosa imitar o som estrábico de menestréis e menestréias” de diferentes gerações, como Cecília Meireles, Mário Quintana e Edimilson Pereira. Lembrei de um soneto de Antonio Cicero, chamado “Dita”, em que, ao citar outros poetas, ele sentencia: “Somos fabulosos por sermos enquanto nos desejando.” É pelo desejo dos poetas uns pelos outros que se mantém viva a chama da poesia? 

Paulo Nunes: Cicero é genial, ele acertou no alvo: os poetas e as poetas não são apenas porta-vozes de nossos desejos, mas provocam outros poetas, numa espécie de guirlanda de emoções. Quando se lê um escritor bom, é como se o mundo fosse salvo da mediocridade; bons poetas e boas poetas nos incentivam a criar, nos provocam cócegas no alfabeto.

Arthur: O que determinou esse grupo de poetas que você cita como influências: Cecília Meireles, Mário Quintana, Manuel Bandeira, Manoel de Barros, Antônio Barreto, Adélia Prado, Edimilson Pereira e Prisca Agustoni? Como e por que eles se manifestaram agora?

Paulo: Os escritos desses e dessas, ao mesmo tempo que renovam a língua portuguesa, estabelecem um vínculo com uma espécie de tradição perdida. Se o leitor perceber com cuidado, a maior parte deles e delas cria a partir de um anacronismo, a oralidade; cria de suas raízes nas ruas, coisas de ouvir falar; a diferença é que, de tanto ouvir falar as dicções das ruas, a gente, poeta da letra, se vê provocado a escrever e reescrever nossas vivências. Chegando aos 60 anos, minha preocupação é ficar rouco e não ser ouvido, por isto escrevo.

Arthur: Qual foi o primeiro poeta que você leu e detonou seu desejo de se aventurar pela poesia? 

Paulo: Por incrível que pareça, foi Olavo Bilac. Antes, no entanto, tive um livro oral em casa: minha avó Judith, filha de índia marajoara com um judeu deportado de Portugal. Vovó era de uma sabença sem igual, conversava com as plantas. Minha avó foi minha primeira poeta.

Arthur: Desde o belo título, seu “Livro insagrado das traquinagens” remete ao universo lúdico das crianças. Penso em Manuel Bandeira: “não sente a criança / que o céu é ilusão.” É por essa e outras que as traquinagens são imprescindíveis em qualquer idade? Qual é a sua maior traquinagem?

Paulo: O Bandeira é um poeta que muito me influencia, embora eu não chegue a seus pés: um erudito que foi sábio ao perceber que as vozes das ruas eram fundamentais para nossa brasilidade. Todo poeta é traquinas. Eu sou um sujeito tímido, um bicho do mato; a literatura me salvou, seja como professor, seja como escritor. Minha maior traquinagem é me superar pela sinfonia de palavras, organizá-las como se eu fosse um regente. Sou frustrado por não saber tocar violão, mas sei rezar terço e fazer versos sem rimas.

Arthur: Quando nos falamos pela primeira vez, você comentou que o livro tem três “pernas”: seu texto, as ilustrações do Tadeu Lobato e o design da Andréa Pinheiro. Como o encontro com eles favoreceu a sua produção poética?

Paulo: Sempre pensei um livro como um objeto de belezas. O Branco Medeiros (que criou comigo a renga vérbico-visual que foi nosso primeiro livro: “Em Citrial, uma história que parece duas”, de 1986) talvez tenha me ensinado o modo de compor com palavras e imagens, sem hierarquias para uma ou outra linguagem. Ficou a semente plantada. Em 1990, conheci o artista plástico e designer Tadeu Lobato e fizemos “Banho de Chuva”, livro que esgotou sete edições já. Desde aí a parceria não cessou mais. Tadeu é um pesquisador de história da arte; seus traços e cores fazem crescer minhas palavras, dão a elas uma dimensão maior. Quando a gente tem a sorte de ter uma programadora visual que entende a proposta de “nonsense” do texto, como foi o caso do projeto de design gráfico da Andréa Pinheiro, o livro fica leve feito pluma, ele voa feito borboletra. Sim, é borboletra mesmo!

Arthur: Sua poesia mira o mundo “do cimo de uma árvore”. Essa árvore, claramente, é uma árvore amazônica. Trata-se de um cenário que se manifesta pelo amor, a exemplo de Ruy Barata (“tudo que eu amei estava aqui”), pela política (para “manter vivas as memórias e as raízes culturais amazônicas”, como diz a Nathália Cruz no posfácio) ou pelas duas coisas?

Paulo: Tenho tentado fugir de uma verdade, mas não há como negar: não sei escrever fora de minha aldeia, mas carece de coragem e discernimento para escrever a partir da Amazônia. A Amazônia é terra de grandes: Bruno de Menezes, Ruy Barata, Mario Faustino, Eneida e Maria Lúcia Medeiros, essa herança toda pesa… Ademais, a região arma-nos arapucas: a de ser regionalistas, com uma escrita que pode ficar fechada em copas, de rimar açaí com bacuri… Então, quem escreve aqui precisa desafiar-se e falar por sobre os muros. A Amazônia é uma ilha, a literatura faz pontes para as travessias.

Arthur: Ainda sobre o posfácio da Nathália, ela resumiu bem que você é um “um cidadão militante pela causa literária e pela educação”. Qual é o papel da cultura, especialmente da poesia, em um projeto de educação?

Paulo: Nathália é uma pesquisadora que entende da minha literatura melhor do que eu. Mas vou tentar responder a este questionamento. Sou paulofreiriano. Aprendo melhor com afeto e coletivamente. Passei por diversas experiências como professor: colégio Deodoro de Mendonça, Semec – Belém, UEPa, e agora estou a caminho de me aposentar pela Unama. A Unama me fez como pesquisador. A sistematização das linguagens da cultura desemburrece e dá sensibilidade profunda à vida. Hoje, para nosso desespero, um “Brasil-cloaca” explodiu, mas a cultura e a educação são vacinas eficientes para a gente superar esta fase terrível de nossa história. A poesia é um floral de Bach na nossa vida.

Arthur: Além dos poetas, no livro você também cita e homenageia instrumentistas paraenses, como Ney Conceição e Dadadá Castro. Eu penso que a música é condição para a poesia. Os poemas líricos da Grécia Antiga que conhecemos hoje eram, na verdade, letras de música. Como nós dois sempre nos cruzamos no métier dos músicos, não posso deixar de perguntar: como é a sua relação com a música? Como ela influencia o seu trabalho?

Paulo: Dadadá e Ney são pretextos para homenagear tanta gente boa que faz, no Pará, a nossa vida mais linda: os músicos, né? Oh terra de gente talentosa que é o Pará… Todo poeta, penso eu, deve alimentar a ilusão de que a alquimia de poesia e música precisa ser retomada, essa coisa que, historicamente, não via a separação entre melodia e verbo. É preciso lembrar sempre esta máxima… A música brasileira, sobretudo a popular, é muito dinâmica e rica, ensina, alfabetiza e politiza pela estética. Não falo da indústria do entretenimento, falo de música-música.

Arthur: Durante muito tempo, a pergunta “letra de música é poesia?” assombrou o ofício dos poetas da canção. Vinicius de Moraes, por exemplo, sofreu muita perseguição, não só por parte dos militares, mas também devido ao preconceito da academia, por se dedicar à música. Como autor e professor, como você vê a relação entre a letra de música e a poesia hoje?

Paulo: Somos felizes de ter no Brasil poetas na música. Na época de Vinicius, as universidades eram mais fechadas, ortodoxas, momento em que o cânone era muito tradicionalista. Hoje, o panorama aponta para uma renovação, se não de toda a universidade, de parte significativa dela. Eu gosto dos poetas do carimbó, dos bois-bumbás e pássaros juninos; estudo os modernistas do Peixe Frito; gosto de alguns poetas do rap e hip hop. Estou cada dia menos canônico, leio Paulina Chiziane e não dispenso a leitura de um Camões ou de um Homero. Como eu costumo dizer, eu não amo por subtração. Na literatura, também: os clássicos não podem excluir minha leitura dos marginais. Hoje, no Pará, por exemplo, as escritoras me chamam mais atenção do que os escritores, uma fase que está demorando a passar. Não se trata de separar por gênero, talvez a poesia nem tenha gênero, mas o bom é ler sempre poetas, letristas e escritores os mais diversos.

Paulo Nunes é paraense de Belém. Professor da Universidade da Amazônia (Unama), estuda autores da lusografia: africanos de língua portuguesa e afropararenses, bem como a literatura brasileira de expressão amazônica. Seu trabalho deságua em duas fontes: a literária e a didática. Tem textos vertidos para o inglês por James Bogan e Stefan Tobler.

Arthur Nogueira é cantor e compositor. Com seis álbuns lançados, é considerado o artista contemporâneo responsável por “renovar a tradição dos poetas na canção brasileira” (O Globo). Sua música agrega a poesia de Antonio Cicero, Adília Lopes (Portugal) e Adonis (Síria). Produziu os álbuns “Humana” (2019), de Fafá de Belém, e “Só” (2020), de Adriana Calcanhotto.